Dr. Marco Aurelio S. Viana

Advocacia Cível

ARTIGOS

Direito de Propriedade sobre o Solo Urbano. Constituição Federal de 1988. Visão constitucional. Função Social. Competência municipal para ordenar a vida urbana. Competência em Matéria Urbanística. Relativização do Direito de Propriedade.

Marco Aurelio S. Viana
Doutor em Direito Civil (UFMG) – Advogado em Belo Horizonte

08/09/2015

Resumo: o artigo examina a propriedade do solo urbano, iniciando pelo estudo da Constituição Federal de 1988, passa pela evolução histórica do direito de propriedade, cuida dos princípios gerais da ordem econômica em função do direito de propriedade, a função social, a política urbana, o direito ao meio ambiente e a competência em matéria de urbanismo

Palavras chave: direito de propriedade. Solo urbano. Função social. Política urbana. Direito ao meio ambiente. História do direito de propriedade. Ordem econômica. Plano Diretor. Competência legislativa em matéria urbanística. Competência municipal. Ordenação da vida urbana. Ordem econômica.

 

1-A Constituição Federal de 1988, no art. 5º, XXII, garante o direito de propriedade, e no inciso XXIII destaca a sua função social; ao dispor a respeito dos princípios gerais da atividade econômica, nela insere a propriedade privada, art. 170, II, e ressalta, no inciso III, sua função social; nos artigos 182 e 183, dispõe a respeito da política urbana, cuidando do desenvolvimento urbano; no art. 225 assegura o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito esse que permeia toda e qualquer interpretação que se faça envolvendo o direito de propriedade, porque estabelece, no interesse coletivo, limitação ao exercício desse direito pelo dominus.

Passo ao exame de cada um desses dispositivos constitucionais.

2- O inciso XXII do art. 5º da Lei Maior estatui que “é garantido o direito de propriedade”, considerando o direito de propriedade como direito fundamental.

No mundo antigo prevaleceu a propriedade coletiva, compatível com as necessidades do homem primitivo. O objeto eram os frutos, a caça, a pesca.

No mundo clássico desenvolvem-se as formas de propriedade individual. A par da nova realidade o esforço jurídico de atribuições e faculdades do dono, em relação aos demais indivíduos e ao Estado.

Na Grécia a propriedade apresenta-se como indivisão e como propriedade familial.

Na indivisão ela pertence à coletividade (tribo ou povo), que nela trabalha em comum, dividindo a colheita, ou cada um cultivando uma gleba. A terra era inalienável nem admitia sucessão, nem testamento. Já no regime de propriedade individual o proprietário tinha ampla disposição, podendo alienar o solo e transmitir por testamento.

Sob a forma de propriedade familial, a propriedade pertence à família, transmitindo-se por herança, mas não passando às mulheres, o que se justificava como forma de se evitar que saísse da família. Não pode ser vendida ou transmitida por testamento, a menos que haja consentimento da família. (BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Rio, Forense, v. 1, pág. 100, 1956)

Em Roma à propriedade comum, que prevaleceu de início, sucede a propriedade privada, que se instala a partir do momento em que a família se afirma frente ao Estado. Tem-se o Dominus et jure Quiritium, estabelecendo as regras de aquisição, limitando sua aquisição ao cidadão romano, abrangendo somente o solo romano. (A respeito do tema: VIANA, Marco Aurelio S., Comentários ao Novo Código Civil. Rio, Forense, 4ª. ed., v. XVI, , págs.47 /55, 2013)

A Idade Média assiste a um processo de desintegração do conceito unitário de propriedade, com o desdobramento das faculdades entre o proprietário e o efetivo possuidor e usufrutuário, enquanto, por outro lado recompõem-se e intensificam-se algumas formas coletivas ou comuns de propriedade.

O sistema feudal decorre da necessidade de defesa do solo contra novas invasões, caracterizando-se esse regime pela separação entre o domínio direto e o domínio útil. Existiam, ainda, os bens de propriedade da Igreja, que não se submetiam ao regime feudal, e que se originavam de legados feitos pelos fiéis, e que eram concedidos, pelos particulares, em usufruto. (PAPAÑO, KIPPER, DILLON, CAUSSE, apud VIANA, Marco Aurelio S. Viana. Curso de Direito Civil. Rio: Forense, pág. 86, 2006; AREAN, Beatriz. Curso de Derechos Reales. Buenos Aires: 2ª. Ed., Abeledo-Perro, 2ª. p. 197)

A apropriação da terra era privilégio conferido ao proprietário pelo poder político, e contrasta com a concepção burguesa da propriedade, que adentrou na modernidade, “concebida como meio de produção destinado à obtenção de lucro e de acumulação individual de riqueza”. (OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Rio, Forense, Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade cit., pág. 128, 2006)

A Revolução Francesa reflete a ideologia fundada no espírito burguês. A propriedade imobiliária assume especial relevo, sendo marcante o impulso favorável à propriedade unitária, individual e livre.
O Século XIX assiste ao embate entre a concepção subjetivista e individualista com os novos movimentos de caráter coletivo, caminhando para novas formas de propriedade em decorrência do desenvolvimento tecnológico e científico.

No mundo capitalista a propriedade passa a ser observada sob a ótica coletiva, pelo ângulo social, tendência que visa a harmonização entre os interesses privados com aqueles coletivos. (LOPES, Teresa Ancona, Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio, Forense, pág. 146, 2009, coordenação Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra)

Nesse ambiente, a Constituição Federal desenvolve o conceito constitucional de propriedade, que CELSO RIBEIRO BASTOS adverte ser mais lato do que aquele dado pelo direito privado. (BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil – promulgado em 5 de outubro de 1988. São Paulo, Saraiva, 1989, v. 2º, pág. 118)

Efetivamente, o direito de propriedade é assegurado a todos, mas, na visão constitucional, ela alcança o conteúdo econômico, o direito patrimonial, sendo a garantia constitucional dirigida à propriedade em geral, e não apenas o bem imóvel. (FILHO, Manuel Gonçalves Ferreira, apud LOPEZ, Teresa Ancona, Comentários à Constituição Federal de 1988 cit., p.. 146)

Nessa linha, a garantia constitucional alcança as criações humanas que apresentem expressão econômica, como se dá com o direito autoral, os inventos, as marcas e patentes.

A propriedade como direito subjetivo, objeto de consideração do direito civil, não é afetada, apenas o seu exercício conhece novos rumos. Não se reduz a propriedade privada urbana a simples função, porque ela é assegurada por si mesma. (BASTOS, Celso Ribeiro, Comentários à Constituição do Brasil cit. pág. 124) A propriedade não é função social (LOPES, Teresa Ancona, Comentários à Constituição Federal de 1988 cit., pág. 147)

O direito de propriedade perde o caráter absoluto que lhe foi atribuído em outros tempos, adquire perfil de direito subjetivo relativo, cujo exercício é limitado pela função social.

3- O inciso XXIII do art. 5º determina que a propriedade atenda a sua função social.

Afasta-se o individualismo, tão ao gosto romano, refletindo aquele choque entre a concepção subjetiva e individualista, e os movimentos de caráter coletivo, que se iniciou no século XIX.

A função social está presente na Constituição Federal de 1946, na reforma constitucional de 1967, na Emenda nº 1, de 1969.

Cuida-se de conceito jurídico indeterminado, ou conceito legal indeterminado. São “palavras ou expressões indicadas na lei, de conteúdo e extensão altamente vagos, imprecisos e genéricos, e por isso mesmo esse conceito é abstrato e lacunoso”. A abstração decorre da hipótese de fato descrita na norma. Diante do caso concreto é que o juiz dirá se a norma incidirá. Nos conceitos legais indeterminados o juiz não exerce atividade criadora, senão atua na conformidade com a longeva concepção da subsunção do fato à norma. “(NALINI, José Renato, Comentários ao Novo Código Civil cit., v. XXII, 2ª. ed., pág. 191)

Intuitivo que, em interpretação que se desenvolva em torno da propriedade privada urbana, a função social tem assento. E isso sob a ótica do cidadão, mas, igualmente, do Poder Público. Em sede de disciplina do desenvolvimento urbano não pode o Município agir segundo conveniência e interesses dos que detêm o poder em determinado momento histórico. Ele está submetido ao respeito devido ao direito fundamental inserido no inciso III do art. 5º da Lei Maior, bem como ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é bem de uso comum do povo. (art. 225, caput)

O reflexo no direito civil se faz de forma clara quando se toma o mandamento do § 1º do ar. 1.228 do Código Civil, onde está dito que o “direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e socais”.

Destaca o fim econômico da coisa, ou seja, seu estado normal de servir ao ser humano, e enfatiza sua finalidade social, dizendo, em outras palavras, que a utilização do objeto da propriedade visa a geração de riqueza.

Ao dar tratamento à propriedade, em inciso específico, evidente o respeito à propriedade privada, que é garantida por si mesma, mas, estabelecendo a noção de função social, a Lei Maior destaca que a atuação do dominus encontra limites. Há determinação clara de até que ponto a propriedade individual pode ser restringida em benefício da comunidade. (Lehmann, Derechos Reales, p. 23)

Ao estabelecer que o direito de propriedade seja exercido em consonância com suas finalidades sociais, não se está autorizando um processo de socialização, mas apenas que há limitações, pelo ordenamento jurídico, ao livre arbítrio do dominus. O que a Lei Maior faz é examinar a propriedade sob o ângulo social, sem extremismo, tanto que estabelece constitucionalmente as hipóteses de intervenção do Estado. (art. 5º, XXIV), que encontra normas infraconstitucionais, Decreto-Lei n. 3.365/41 e Lei n. 4.132/1962.

Ao abordar esse tema, em outra oportunidade, firmei que “o que se pretende, ao se submeter o exercício do direito de propriedade à sua função social, é evitar que o proprietário seja guiado por suas particulares conveniências, contrariando interesses sociais relevantes. No estudo do tema, José de Oliveira Ascensão pondera que ““o princípio não deve ser mal entendido, chegando-se, por exemplo, à conclusão de que a propriedade se esgota nesta função social, como pretendia Duguit. A garantia da autonomia pessoal, é, logicamente, o objecto primário da atribuição do bem em termos reais. E este falharia se a conduta do sujeito fosse minunciosamente determinada pelos órgãos públicos, sob a alegação da garantia da função social. O que se pretende antes demais é a colaboração com a liberdade dos indivíduos. As intervenções em nome da função social devem ser prudentes, prevendo os casos em que os titulares se desviaram flagrantemente das necessidades gerais, ou em que estas se apresentam de modo premente.” (Marco Aurelio S. Viana, Comentários ao Novo Código Civil cit., 4ª. e., v. XVI, pág. 99)

A função social alcança o exercício do direito, não toca nos poderes do dominus. Respeita a propriedade privada, como enfatizado, ela é garantida, é direito fundamental, mas o seu exercício não pode se apartar do bem comum. Essa ideia já estava na Constituição de Weimar, art. 153º, que entendia ser o exercício do direito de propriedade um serviço prestado ao bem comum. Sem descer ao casuísmo, adotou-se um conceito jurídico indeterminado, que abre campo para que seja possível acompanhar, na interpretação, as mudanças políticas, econômicas e sociais, entre vários outros fatores, permitindo melhor adequação jurídica. Entrega-se ao intérprete a fixação do conteúdo real da norma jurídica, com exame para o caso concreto.

O proprietário exerce direito subjetivo, obtendo os serviços que são próprios ao bem, mas com a relatividade ditada pelo respeito à finalidade econômico social. Os bens colocados à disposição dos seres humanos devem ter uma utilização que os torne produtivos, ou seja, que gere riqueza.

A Constituição Federal reflete o esforço que se desenvolve modernamente contra o individualismo, em favor da solidariedade, como a dizer que o dominus detém circunstancialmente o direito de propriedade, mas que os bens, sobre os quais esse direito é exercido, em especial os imóveis, em verdade dizem respeito a todos os cidadãos. Arma o Estado para as providências necessárias à busca do equilíbrio entre o proprietário e terceiros, assegurando a oponibilidade erga omnes, mas sem os exageros do individualismo. O Poder Judiciário é Estado, e a ele caberá dizer, no embate entre a utilização dos bens de produção e o interesse social, estabelecer a intensidade dessa intervenção, fixando os limites de atuação do proprietário.

4- O Direito regulamenta a apropriação dos bens pelo direito de propriedade e pela posse.

Antes de ser instituto jurídico, a apropriação dos bens é fato econômico, cuja disciplina se faz pelo duplo objetivo do Direito: o normativo, perseguindo a previsibilidade e a segurança, e o instrumental, como meio de realização da política do Estado.

A Constituição Federal de 1988 garante o direito de propriedade (art. 5º, XXII) e destaca sua função social (art. 5º, XXIII), além de colocar a propriedade privada como um dos princípios da ordem econômica. (art. 170, III), como já ressaltado.

No capítulo dedicado à ordem econômica (arts.170 a 192) a Lei Maior busca sistematizar “os dispositivos relativos à configuração jurídica da economia e à atuação do Estado na economia, isto é, os preceitos constitucionais que, de um modo ou outro, reclamam a atuação estatal no domínio econômico, embora estes temas não estejam restritos à este capítulo do texto constitucional.” (BERCOVICI, Gilberto Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio, Forense, 2009, p. 1935, coord. Paulo Bonavides, Jorge Miranda, Walber de Moura Agra)

A propriedade do solo urbano integra a ordem econômica, e tem seu exercício submetido à função social e à destinação econômica. A garantia constitucional da propriedade se faz em razão do cumprimento dessa função social.

O exercício do direito de propriedade tem uma nova perspectiva, que não se reduz em atender apenas no bem estar do “dominus”, mas dentro de uma perspectiva ampla, que é atender à sua função social.

No conteúdo econômico do direito de propriedade, que o art. 1.228 do Código Civil, caput, define como a faculdade de usar, gozar e dispor, em linguagem que remonta do direito quiritário, fica clara a ampla disposição do proprietário. Mas esse direito, um dia entendido como absoluto, cede à finalidade econômica e social que a riqueza representa no seio social. (§ 1º do art. 1.228 do CC/2002)

Em verdade, nos dias que correm, abandonou-se a linguagem analítica do Código Civil e se considera o direito de propriedade como unidade global. Já escrevi que “o proprietário está legitimado a explorar o objeto em toda a sua intensidade, dentro dos limites naturais, legais e decorrentes da vontade, havendo uma gama de serviços que não se pode enumerar. Há uma sobreposição de relações abrangentes, que justifica a tendência moderna em se abandonar a enumeração dessas faculdades, dado o seu número ilimitado, preferindo-se considerar a propriedade com unidade global, como síntese de várias faculdades não determináveis a priori. Essa noção é importante porque ela permite que se reserve ao proprietário as faculdades que a evolução da técnica vier a tornar possível. A nosso ver, toda e qualquer força de utilização ou obtenção de serviços que a coisa permitir, está reservada ao proprietário. – O que temos não é uma soma de faculdades, mas a unidade de todos os poderes conferidos ao proprietário; não uma série de faculdades determinadas a priori, mas um poder geral, integrado por todos os poderes imagináveis. Em verdade, não há como dizer o que o proprietário pode fazer, mas apenas o que não pode, como decorrência do limite imposto pelas normas jurídicas ou por derivar da concorrência do direito de outrem.” (VIANA, Marco Aurélio S. Viana, Curso de Direito Civil – Direito das Coisas. Rio, Forense, p. 77, 2006)

O direito de propriedade é garantido, “mas o seu exercício está voltado para o bem comum.” (VIANA, Marco Aurélio S. Viana, Curso cit. – Direito das Coisas, p. 89)

Nessa linha, observa BÁRBARA ALMEIDA DE ARAÚJO que nessa concepção de propriedade funcionalizada, não há mais “como encarar o domínio como direito subjetivo que, na sua origem liberal, tinha forte caráter de neutralidade e unilateralidade. A propriedade constitucional irá comportar, portanto, não somente os interesses proprietários, como também interesses não proprietários, juridicamente tutelados, tais como: direito ao meio ambiente, direito à saúde, ao trabalho, à moradia, ao consumo.” (ARAÚJO, Bárbara Almeida de. A Posse dos Bens Públicos. Rio, Forense, p. 46, 2010)

Não se por levantar qualquer dúvida quanto ao fato de ser direito do proprietário desenvolver toda e qualquer forma de aproveitamento do solo, tendo como limite, ao exercício desse direito, a função social da propriedade. Dentro dessa perspectiva é desenvolvida a atividade econômica.

De outro lado, a Lei Maior abre capítulo dedicado à política urbana (arts. 182 e 183), que foi regulamentada pela Lei n. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade). A lei especial fornece a base instrumental a ser utilizada em matéria urbanística “sobretudo, como aduz Odete Medauar, na esfera municipal, tendo como objetivo o melhor ordenamento do espaço urbano, em estrita observância da proteção ambiental, da busca de soluções para os graves problemas sociais típicos das grandes cidades, como a moradia, o saneamento básico, a circulação, os transportes urbanos”. (MALUF, Carlos Alberto Dabus. Comentários à Constituição Federal de 1988, p. 2029)

No §1º do art. 182 a Constituição Federal de 1988 deixa bastante claro que o plano diretor é o “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.

Toda a política de desenvolvimento urbano está fortemente vinculada ao Plano Diretor, pelo qual se realiza o desenvolvimento físico das cidades. É por ele que o Município traça o desenvolvimento da política urbana, e nele estão as diretrizes para elaboração da lei de uso e ocupação do solo urbano. (CASTRO, José Nilo de. Direito Municipal, Direito Metropolitano, pág. 81)

O plano diretor “consubstancia a vida na cidade. Busca ordenar o seu crescimento, evitar conflitos sociais, planejar o seu desenvolvimento habitacional, comercial e industrial, recuperar áreas deterioradas, estabelecer vias de tráfego que facilitem a circulação de veículos. Enfim, dirige os destinos do município, objetivando criar condições para uma cidade sustentável.” (OLIVEIRA, Regis Fernandes de, apud MALUF, Carlos Alberto Dabus, Comentários à Constituição Federal de 1998, cit. p. 2030)

O exercício do direito de propriedade, no espaço urbano, encontra nas exigências do bem estar social, plasmado na Lei Maior, e na legislação municipal sobre urbanismo, os parâmetros para a obtenção dos serviços que a propriedade pode oferecer.

Na ADI 478-6-SP, o Min. Carlos Velloso deixa bastante clara a competência municipal nesse território, nos seguintes termos: “Da mesma forma, a faculdade que tem o Município de promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano – C.F., art. 30, VIII – por relacionar-se com o direito urbanístico, está sujeito a normas federais e estaduais (C.F., art. 24, I). – “Uma e outra competência, entretanto, sujeitam-se a normas de entidades políticas outras, é certo. Mas essas normas deverão ser gerais, em forma de diretrizes, sob pena, repito o que disse no voto que proferi por ocasião do julgamento da ADIn 390-SP, de tornarem inócua a competência municipal, que constitui exercício de sua autonomia.” (Julgamento em 09/12/196, DJ de 28/02/1997)

Esse entendimento permite concluir que é competente o Município para ordenar a vida urbana, como decorrência de sua autonomia. Cabe-lhe, ainda, o planejamento municipal, com ênfase para o Plano Diretor e disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo, como está no art. 4º, III, a e b do Estatuto da Cidade.

5-Ao cuidar da competência em matéria urbanística, a Constituição Federal atribui à União a edição de normais gerais, no que é denominado de competência concorrente. (art. 24, § 1º) Essa competência, contudo, não exclui a competência legislativa suplementar dos Estados. (§ 2º) A toda evidência que o Município tem competência para legislar em matéria urbanística, o que significa que pode adequar a legislação federal e estadual aos interesses locais, já que é sua atribuição a política de desenvolvimento urbano, na dicção do art. 182 da Constituição Federal de 1988. Ainda que esteja submetido às diretrizes gerais ou normais gerais editadas pela União e pelo Estado, em sede de direito urbanístico, isso não prejudica sua atuação, no processo de adequar ao interesse local às diretrizes gerais. (art. 30, I e VIII)

Em outras palavras, o Município é competente para promover a disciplina da utilização do espaço urbano, partindo das normais gerais, e adaptando-as às necessidades locais, segundo a diretriz que entende pertinente ao desenvolvimento da cidade. Isso fica muito claro com a regulamentação dos arts. 182 e 183 da Lei Maior, pela Lei n. 10.257/2001. A lei especial atribui à política urbana: a garantia do direito a cidades sustentáveis (art. 2º, I), gestão democrática (II), cooperação entre os governos e a iniciativa privada e os demais setores no processo de urbanização, visando o interesse social (III), o planejamento do desenvolvimento da cidade (IV), ordenar e controlar o uso do solo (VI), a simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e demais normas edilícias (XV), entre várias outras medidas, todas voltadas para a melhor qualidade de vida.

No art. 39 diz que a propriedade urbana cumpre sua função social “quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressa no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades do cidadão quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei”.

Ora, a competência da União e do Estado em matéria urbanística é geral, ou seja, o que aqueles entes podem fazer, no âmbito legislativo, é estabelecer normas gerais. A partir dessas normas gerais, o Município goza de amplo poder de decisão, e pode legislar.

O Município deve obedecer às diretrizes gerais, mas está autorizado, dentro desses limites, a legislar de forma suplementar. A União legisla sobre condomínio edilício e parcelamento do solo, mas o faz mediante diretrizes gerais, que o Município deve adequar à realidade local. A propriedade urbana cumpre sua função social, como está na dicção do art. 39 do Estatuto da Cidade, quando atende à ordenação da cidade, na forma como foi expresso no Plano Diretor, visando atender às necessidades dos cidadãos. Somente o Município sabe das suas necessidades locais, e a ele incumbe atendê-las na ordenação das cidades, editando regras urbanísticas. Tais normas, como já destacado pelo STF, são de competência do Município, sob pena de ser inócua a competência municipal. (ADI 478-7-SP, já transcrita)

A União e o Estado não esgotam a disciplina relativa ao direito urbanístico, apenas produzem normais gerais. Se a União não desenvolve as diretrizes gerais, o Estado pode fazê-lo, no âmbito de seu território. Se a União editar normas gerais após aquelas que o Estado editou, a eficácia da sua norma geral fica suspensa. (art. 24, §4º) Já o Município atua, em matéria urbanística, com apoio no art. 30, VIII da Constituição Federal: “Promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante o planejamento e controle do uso, do parcelamento e ocupação do solo urbano”.

Além disso, é sua competência, nos termos do art. 30, I da Lei Maior, atender ao interesse local. Interesse local é conceito jurídico indeterminado, ou conceito legal indeterminado. E como tal tem como cor mais específica a indeterminação, cabendo ao juiz, diante do caso concreto, preencher o significado concreto do conceito jurídico indeterminado, convertendo-o em conceito jurídico determinado pela função. Interesse local é aquele que diz respeito ao que ocorre no cotidiano da vida municipal. (COSTA, Nelson Nery, Comentários à Constituição Federal de 1988, pág. 633)

Não se pode ordenar territorialmente o Município sem ter em vista o interesse local. Em matéria urbanística, o atendimento ao interesse local amplia a atuação do Município. A título de argumentação, deixando de lado o interesse local, mesmo assim, a ordenação da cidade só se efetiva se o Município puder legislar de forma ampla sobre urbanismo, atuando nos espaços vazios, que não são alcançados pela legislação editada pela União e pelo Estado. A política de ordenação da cidade é atribuição do Município, e nesse território, sua competência é ampla, orientada pelas diretrizes gerais.

No estudo do tema, RICARDO MARCONDES MARTINS sustenta que “a Constituição de 1988 atribui à União, aos Estados e ao Distrito Federal a competência para legislar concorrentemente sobre direito urbanístico (art. 24, I). No parágrafo primeiro do art. 24, no entanto, restringe a competência da União à edição de normas gerais: aos Estados e ao Distrito Federal, a contrario sensu, é dada a competência para editar normas específicas. -“Por força do parágrafo segundo, caso a União edite as normas gerais, Estados e Distrito Federal possuem também competência suplementar, que conforme a doutrina de Lúcia Valle Figueiredo, consiste em “preencher claros, adicionar, esclarecer, aperfeiçoar”. Podem, assim, estabelecer, para o seu âmbito territorial, normas gerais complementares às normas gerais editadas pela União ou regulamentar as normais gerais editas por ela. – “É, caso a União não exerça sua competência, possuem, nos termos do parágrafo terceiro, competência plena. A plenitude desta competência sofre, todavia duas limitações: uma, qualitativa, posto que a Constituição acrescenta “para atender a suas peculiaridades”, ou seja, o exercício da competência não pode exorbitar as peculiaridades ou interesses próprios do Estado em que foi editada; outra temporal, posto que tem suspensa sua eficácia, caso editada, posteriormente, norma geral federal com ela incompatível.” (MARTINS, Ricardo Marcondes, As Normas Gerais de Direito Urbanístico, In Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Salvador, n. 20, dez./jan./fev./2009/2010). (grifos no original)

Nessa linha, as normais gerais têm como característica fundamental, a sua abstração. Já a norma particularizada, que é de competência municipal, ela está ligada à realidade, à situação concreta. Por isso a competência plena, prevista no § 3º do art. 24 da Constituição Federal, na inexistência de lei federal. A competência da União para editar normas gerais sobre direito urbanístico, não inibe a competência do Estado, nem do Município, para editar normas visando aperfeiçoar a legislação existente, bem como exercer competência plena, naquilo que a União não tenha legislado.

Editada norma geral de direito urbanístico, não se pode perder de vista a competência privativa em matéria de direito urbanístico, assegurada aos Estados e Municípios, este para legislar sobre assuntos de interesse predominantemente local (art. 30, I da CF), suplementar à legislação federal e estadual no que couber (inciso II); promover o adequado ordenamento territorial, o que se efetiva pelo planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. (inciso VIII). É atribuição do Município, ainda, editar o plano diretor (art. 182, § 1º da CF).

A par das diretrizes gerais, o Município edita normas para ordenação direta dos espaços habitáveis, que é matéria de interesse municipal. Isso quer dizer, em outras palavras, que o Município pode aperfeiçoar a legislação federal de forma a adequá-la à sua realidade. NELSON NERY COSTA ensina que “a Constituição de 1988 estabelece que o Município legisla sobre interesse local. Cabe a este todas as matérias em que o interesse local prevalece sobre o geral ou regional. Compete ainda ao Município suplementar a legislação federal e estadual, no que couber, ou seja, pode adequar tais normas à realidade local, de acordo com o inciso II, do artigo 30, do texto constitucional.” (COSTA, Nelson Nery, Comentários à Constituição Federal de 1988 cit., p. 634)

Além disso, o art. 30, VIII da Lei Maior, em exame conjunto com o art. 182 da CF, permite concluir que o Município legisla de forma ampla no sentido de promover o adequado ordenamento territorial, o que é referendado pelos arts. 4º e 39 do Estatuto da Cidade, que é lei que regulamenta os arts. 182 e 183.

Por tudo o que ficou dito, é indiscutível que o Município tem respaldo constitucional em matéria urbanística, cumprindo-lhe atender ao interesse local, e planejar o adequado ordenamento territorial, o que não seria possível se não lhe fosse assegurado adaptar a legislação federal, que edita normas gerais, à sua realidade, visando o ordenamento territorial. A realidade local pode exigir que a legislação federal seja aperfeiçoada, porque os fatos andam à frente das lei. Como ensinava Josserand, a lei está sempre em mora com os fatos. Por isso é salutar que o Município discipline nos vazios da legislação federal e estadual, ou aperfeiçoe a legislação existente, de forma a atender ao interesse local e promover o adequado ordenamento territorial.

Não se pode perder de vista, ainda, a teoria dos direitos implícitos. Sendo de competência do Município a organização do seu espaço físico e social, seria contraditório que ele não pudesse legislar em matéria que envolva o direito urbanístico, que vise a urbanificação. A Lei Maior teria dado os fins, sem assegurar os meios…

A legislação sobre parcelamento do solo para fins urbanos, bem como o condomínio edilício e a incorporação imobiliária, assim como a figura criada pelo art. 3º do Decreto-lei n. 271/1967, são normas gerais ou diretrizes gerais em matéria de urbanismo, por exemplo, e o Município está autorizado a editar Lei que adapte as normas gerais, objeto da legislação citada às suas peculiaridades.

6- No estudo da ordem econômica constitucional, LUIS ROBERTO BARROSO ensina que a livre iniciativa e o valor do trabalho humano são dois dos princípios fundamentais do Estado brasileiro e os fundamentos da ordem econômica, reportando-se aos arts. 1º, IV e 170, caput da Lei Maior. (BARROSO, Luis Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatual no Controle de Preços, In Revista Diálogo Jurídico, n. 14.– junho/agosto de 2002 – Salvador – Bahia – Brasil pág. 3)

Esclarece o jurista que o princípio da livre iniciativa pressupõe, em primeiro lugar, “a existência da propriedade privada, isto é, de apropriação particular dos bens e dos meios de produção (CF, arts. 5º, XXII e 170, II) (A Ordem Econômica Constitucional cit. pág. 4)

Ao enfocar os princípios de funcionamento, o doutrinador esclarece que eles se referem à dinâmica das relações produtivas, “às quais todos os agentes estão vinculados”, e apresenta classificação dos princípios referidos, neles inserindo a propriedade privada e a função social da propriedade, bem como a defesa do meio ambiente. (A Ordem Econômica Constitucional cit. pág. 8)

Nessa linha, o autor sustenta que a propriedade privada “é condição inerente à livre iniciativa e lugar da sua expansão, além de direito individual constitucionalmente assegurado. Sua função como princípio setorial da ordem econômica é, em primeiro lugar, assegurar a todos os agentes que nela atuam ou pretendam atuar a possibilidade de apropriação privada dos bens e meios de produção. Ao mesmo tempo, impõe aos indivíduos em geral o respeito à propriedade alheia e limita a ação do Estado, que só poderá restringir o direito de propriedade nas hipóteses autorizadas pela Constituição Federal. – Nada obstante, e superando uma concepção puramente individualista da propriedade, texto constitucional deverá ter uma função social. O conceito é relativamente difuso, mas abriga ideias centrais como o aproveitamento racional, a utilização adequada dos recursos naturais, a preservação do meio ambiente, o bem estar da comunidade. A frustação de tal mandamento constitucional dá ensejo a sanções previstas na própria Carta.” (A Ordem Econômica Constitucional cit. pág.9)

Evidente que se opera a relativização do direito de propriedade, que deixa de ser absoluta. O absolutismo só se apresenta na oponibilidade erga omnes, mas sem que se perca a tutela do não proprietário.

O solo urbano presta-se a várias atividades econômicas, como a incorporação imobiliária, o parcelamento do solo, a construção, a compra e venda, o condomínio urbano, o shopping center, para citar algumas dessas utilizações.

Como o direito de propriedade deixou o seu caráter sagrado e absoluto, e se torna relativo e exercido no interesse coletivo, também, o dominus fica vinculado à política urbana, que estabelece os limites de atuação do proprietário, desenvolvendo a função social da propriedade do solo.

A propriedade gera riquezas e essa é de todos, e não fica ao talante dos interesses e conveniências do titular do direito, apenas. Necessário que seja estabelecido, na sua exploração, uma harmonia com a finalidade social, que considera o não proprietário.

E enfatizando o interesse da coletividade são criados mecanismos que inibem a estagnação do fluxo da riqueza, como se passa com a especulação, em que o proprietário se beneficia com a valorização do solo, e tem ganhos sem ter dado um passo sequer no sentido de fomentar os benefícios que poderia gerar, adentrando na atividade econômica. Pode, ainda, ser beneficiado com medidas tomadas pela Administração Pública em obras que valorizam os imóveis em determinada região. E nada disso é interessante para a coletividade.

Nesse contexto, a sociedade beneficia-se com o processo de urbanização, permitindo que sejam gerados serviços públicos de melhor qualidade (embora, até o momento isso seja apenas uma expectativa, mas certamente esse dia virá).

Ao regulamentar os artigos 182 e 183 da Lei Maior, o Estatuto da Cidade cria institutos importantes para que o objetivo seja alcançado, como o imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo, parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, entre outros.

A garantia da propriedade individual é assegurada constitucionalmente, mas o uso que se faça do solo urbano deve ser submetido ao interesse coletivo. O proprietário, atuando como agente econômico, dentro da diretriz da livre iniciativa, goza de liberdade desde que observe a função social. A atividade econômica é, em essência, circulação de riqueza, e isso se faz sempre tendo em vista os caminhos sociais traçados pelo Plano Diretor.

Considerando que o direito ao meio ambiente é assegurado constitucionalmente, nenhuma atividade econômica pode feri-lo, e isso inclui a utilização da propriedade do solo urbano, e não se permite que o Poder Público ofenda esse direito.

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