Dr. Marco Aurelio S. Viana

Advocacia Cível

ARTIGOS

Curatela, interdição e os loucos de todo gênero

Marco Aurelio Da S. Viana
Doutor em Direito Civil (UFMG) – Advogado em Belo Horizonte

SUMÁRIO
1. Noções introdutórias. 2. Visão moderna sobre a proteção de pessoas acometidas de transtorno mental. 3. O direito positivo pátrio. 4. A descodificação. 5. A terminologia. 6. Suportes conceituais para a disciplina legal. 7. Da incapacidade temporária.

1.NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
O Direito não é uma ciência estanque, independente, que exista por si só. Ele depende da experiência dos outros ramos do conhecimento humano, na abordagem da realidade extrajurídica. E é a partir das informações que lhe sejam prestadas é que essa realidade adentra à cidadela do Direito.

Os fatos sociais gravitam no mundo fático. À medida que refletem no tráfico social, criando pontos de estrangulamento do seu fluxo normal, o Direito é convocado a dar tegumento jurídico às situações pré-normativas, submetidas, então, a um processo de qualificação. A regulamentação decorre da necessidade de se estabelecer a coexistência das liberdades particulares.1 Com isso temos a previsibilidade da conduta alheia que leva à segurança, e permite que haja estabilidade.

A esse respeito tivemos oportunidade de dizer que “o jurídico é uma das diversas formas capazes de definir o comportamento dos homens entre si, que se destaca pelo cunho do inexorável e do impositivo, dispondo de sanção mais efetiva. O jurídico sustenta a ordem, pois as normas que impõe permitem a integração do homem na sociedade de tal forma que, inibindo a violação da esfera de interesses dos outros membros, que levaria a uma zona de turbulência, evita o desequilíbrio e a perda da harmonia. E esses dois fatores decorrem da ordem, são fundamentais para a vida em sociedade, indispensável ao ser humano. Assim, o Direito permite a convivência social e depende da sociedade para existir, pois, como já encarecemos, o homem que vive sozinho não reclama regras para limitar sua atuação.”2

As noções lançadas visam demonstrar que a disciplina que se pretenda para a curatela e a interdição passa necessariamente pelos elementos que nos possam fornecer as ciências psis. Em verdade, a loucura tem interesse para o Direito porque é o elemento determinante para o instituto da capacidade. Sabemos que a vontade é o impulso criador do negócio jurídico, seu elemento específico. Ela é exteriorizada visando consequências jurídicas, observado o território traçado pela norma legal, que ampara e sustenta.3 O movimento volitivo deve existir e funcionar normalmente4. A pessoa dita louca tem sua vontade. Prejudicada e sua atuação no comércio jurídico pode ser desastrosa. Sua ação pode perturbar a vida social. É por isso que ele tem tratamento diferenciado dos demais cidadãos. Sob a ótica do Direito Penal ele é inimputável. No território do Direito Civil ele é incapaz para a prática dos atos da vida civil.

Sabemos que a capacidade de direito reclama apenas a condição de existência da pessoa, é comum a todos os sujeitos de direito e nasce com a personalidade.5 A capacidade de fato não corresponde a todos os que podem ter direitos, porque exige uma determinada aptidão espiritual: a aptidão necessária para formar volições (capacidade volitiva).6

Por isso é que já deixamos escrito que “a capacidade de fato pressupõe a capacidade de querer, correspondendo, por isso, em maior ou menor medida aos sujeitos, segundo as condições particulares nas quais eles se encontram: condições de fato nas quais o ordenamento jurídico assinala eficácia de pressuposto ou de limite da capacidade de exercício. Envolve as condições legais necessárias à validade da efetivação de um ato.
A limitação ao exercício dos direitos está vinculada ao estado da pessoa, gerando as incapacidades que inibem a atuação do sujeito, por ato próprio, na órbita do direito.
“7
A nosso ver, contudo, não basta afastar o louco da vida social, preservando o comércio jurídico, mas preservá-lo como ser humano, assegurando- lhe a cidadania.

2- VISÃO MODERNA SOBRE A PROTEÇÃO DE PESSOAS ACOMETIDAS DE TRANSTORNO MENTAL

Modernamente está sendo revista a noção clássica do tratamento dos chamados loucos. A Psiquiatria e a Psicanálise evoluíram, o que se supõe. O documento de 17/12/91 da ONU (A Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e Melhoria de Assistência à Saúde Mental) recomenda que não se procedam a internações psiquiátricas involuntárias, e as ciências psis questionam a pretendida inferioridade do denominado louco. Na Itália, temos a Lei Brassaglia, que abre as portas dos hospícios. É capítulo importante no estudo das experiências no tratamento dos chamados doentes mentais. Em verdade, é mais fácil retirar o doente da vida social, ainda que isso signifique sua exclusão.

Não percamos de vista que a interdição implica em exclusão jurídica do interditado.

É possível até mesmo questionar se o fato de catalogar um ser humano como portador de uma doença mental é o bastante para considerá-lo incapaz para os atos da vida civil. Os casos do Juiz Schreber e do filósofo Louis Althusser autorizam colocar em dúvida a vinculação.

Nesse novo panorama, em que se dá maior dimensão à dignidade da pessoa humana – a Constituição Federal de 1988 fez opção clara nesse sentido, quando disciplina a família, o menor e o idoso -, a regulamentação da curatela e da interdição exige um tratamento novo, em que não se exclua apenas o chamado louco da vida social, mas que se busque tratá-lo de forma conveniente, ensejando sua reintegração na sociedade e na vida familiar.

3. O DIREITO POSITIVO PÁTRIO

No campo legislativo, o Brasil dispõe do Código Civil, do Decreto n.24.559/34 (dispõe a respeito da profilaxia mental, a assistência e a proteção da pessoa e bens do psicopata) e o Decreto-Lei n. 891/38, voltado para os toxicômanos e intoxicados por bebidas alcoólicas.

O Decreto n. 24.5S9/34 leva à exclusão do doente da vida em sociedades, estabelecendo o seu isolamento em hospital psiquiátrico como forma de tratamento. Excluído socialmente ele se torna um excluído jurídico, o que decorre da interdição. Acaba por ficar excluído da vida familiar, do trabalho; sofre exclusão no processo educacional e terapêutico, porque fica relegado ao hospital psiquiátrico.

O modelo brasileiro, em se considerando os apontamentos que levantamos até agora, está ultrapassado. Ele soluciona o problema da família, que se livra do estorvo de cuidar do doente, e da sociedade, que o isola em um hospício, sem dele cuidar ou recuperar. Em verdade, em matéria de respeito ao ser humano, os nossos doentes mentais e nossos presos não são tratados sequer com um mínimo de dignidade.

Nessa linha, o primeiro passo a se tomar é estabelecermos uma política nessa área. Como devemos cuidar dos nossos loucos? Continuaremos a deixá-los isolados, como trapos humanos, ou desenvolveremos esforços para reintegrá-los no comércio social?

Se resposta foi favorável ao doente mental a disciplina do instituto da curatela deverá se fazer em molde diferente daquele que conhecemos atualmente.

4. A DESCODIFICAÇÃO

Necessário se faz, antes de mais nada, estabelecermos como se fará a disciplina do Direito de Família.
Ele será regulamentado no Código Civil, ou devemos elaborar um Código de Família. Isso envolve, naturalmente, discussão a respeito da descodificação do Direito Civil.

A nosso ver, o Direito de Família apresenta perfil perfeitamente definido e próprio, que o coloca em posição peculiar. As relações são dinâmicas por natureza. Suas normas reclamam uma flexibilidade que não se coaduna com a idéia de codificação até agora em vigor. Basta notarmos que o Código Civil deixou de ser a lei básica em matéria de Direito de Família, lugar ocupado pela Lei Maior. Observa-se, ainda, um certo pudor em se modificar o Código Civil. Basta termos em mente que há um Projeto se arrastando desde 1972…

É importante, ainda, mesmo que não se adote um Código de Família, que as normas legais sejam mais amplas, abrangentes, de forma a permitir que sua interpretação siga as transformações sociais. Uma lei não se faz para o presente, mas essencialmente para o futuro. E para que ela não fique em mora com os fatos é importante que se discipline de forma menos rígida, permitindo que sua interpretação acompanhe o amanhã.

5. A TERMINOLOGIA

Um outro ponto que não se pode esquecer está vinculado à técnica legislativa, onde a terminologia é fundamental. E tão importante quanto ela é saber exprimir com fidelidade o fim que se persegue. O estudo da curatela e do processo de interdição revela que se tem dado muita ênfase à terminologia que devemos empregar: o diploma civil fala em lowcos de todo gênero; o Decreto n. 34.559/34 prefere utilizar o vocábulo psicopata; o diploma processual civil refere-se ao portador de anomalia psíquica. Todos esses textos cuidam, no entanto, da mesma realidade: da tutela da pessoa incapaz de reger sua pessoa e bens.

O ser humano é afastado do comércio jurídico porque não dispõe de capacidade volitiva. O pressuposto fático da curatela é a incapacidade, e o jurídico é a decisão judicial (Caio Mário da Silva Pereira). Por isso, a nosso ver, é estéril a discussão que se arrasta em torno da nomenclatura adequada. O que o Código de Família, ou o Código Civil devem fazer é apenas estatuir que ficam sujeitos à curatela todos aqueles que não estão em condições de dirigir sua pessoa ou administrar os seus bens. No processo de interdição se faria a avaliação dos fatos, examinando-se os motivos de ordem patológica ou acidental, congênita ou adquirida, que prejudicam a capacidade volitiva. Com isso evitaremos essa vinculação equivocada que se faz entre a doença mental e a aptidão para participar do comércio jurídico. Mesmo sob a égide, do Código Civil em vigor é errado concluirmos que o simples fato de uma pessoa apresentar qualquer problema mental esteja automaticamente incapacitada de fato. É indispensável que reste provado de forma cabal que o portador dessa ou daquela doença mental é, por isso, também incapaz. Já citamos dois exemplos clássicos a esse respeito.

6. SUPORTES CONCEITUAIS PARA A DISCIPLINA LEGAL

Reunindo os elementos que colhemos no correr do presente trabalho, é possível chegarmos a algumas conclusões importantes para uma disciplina moderna da curatela e do processo de interdição.
Inicialmente não devemos perder de vista que não se trata apenas de nomear um curador, e alijar o interditado da vida social. O que se reclama é bem mais do que isso.

O incapaz não pode ficar excluído da vida familiar, social e jurídica. Ele deve ser tratado como ser humano titular do direito à cidadania. No processo de interdição é fundamental que se trace um quadro de sua doença e de como tratá-la, impondo-se essa obrigação ao curador. Com isso fica afastada a visão clássica de atuação do curador, que nada mais faz do que representar o incapaz, sem considerá-lo como ser humano. É lógico que o tratamento deve ser suportado pelo Estado. E esse seja talvez o ponto mais difícil de se vencer, pois a saúde, no Brasil, não merece maior atenção do Poder Público…

A interdição deve ser orientada no sentido de se apurar realmente o grau de incapacidade da pessoa, independentemente da doença que tenha acometido o interditado. Não é bastante que o laudo diga que ele é portador dessa ou daquela anomalia psíquica, mas que esclareça se ele, apesar disso, ou por isso, está ou não em condições de reger sua vida.

O processo deve contar com um grupo interdisciplinar, formado por pessoas ligadas a essa área, entre eles assistente social, psiquiatra, psicólogo e outros profissionais – isso deve ser objeto de exame apurado -, que avaliará a situação do interditado e dirá se ele é incapaz, em que grau, e quais as medidas que devem ser tomadas. O juiz, a partir das conclusões que lhe forem oferecidas, irá graduar a interdição. Com um grupo de profissionais estudando a situação do interditado haverá maior segurança para que venha sentença adequada.
Encerrado o processamento da interdição, caberá ao Ministério Público acompanhar o caso, exigindo que, ao lado da prestação de contas, se necessária, se faça prova de que o interditado está sendo tratado. E sob a orientação do Ministério Público se fará reavaliação das condições do interditado, para que se possa aquilatar se é possível sua reintegração na vida social e em que medida. Se ele teve melhora no seu estado geral talvez seja possível permitir que atue diretamente em determinados setores. Com isso, o portador da anomalia será valorizado como ser humano, não se sentirá um excluído, mas perceberá que vive uma situação circunstancial. Ele saberá que dispõe de um amanhã.

Obviamente que a disciplina do instituto reclama o enfoque de outros pontos. Mas o que nos interessa, nos limites do presente trabalho, é despertar os pontos cruciais desse processo, que estão a exigir transformações, porque a interdição não pode ser considerada uma situação irreversível, nem o interditado um estorvo.

7. DA INCAPACIDADE TEMPORÁRIA

Não é possível encerrar o nosso estudo sem deixar uma palavra a respeito de certas situações de fato, que reclamam solução pronta, mas que não mereceram a devida atenção do Direito.

Falamos daquelas pessoas que se vêm repentinamente impossibilitadas de reger a própria pessoa, embora não se possa dizer que sejam incapazes a reclamar processo de interdição. Referimo-nos àqueles que são surpreendidos por um desastre automobilístico, por exemplo. É possível que o seu estado importe em impossibilidade momentânea para os atos da vida civil. Muitas vezes sequer pode manifestar sua vontade para permitir a outorga de procuração a um familiar. A mulher, os filhos, no entanto, continuam a viver normalmente. Temos as despesas normais, que ficam prejudicadas porque a mulher não pode movimentar a conta bancária, receber os salários, enfim, todos os atos que o marido e pai praticava antes. Em uma tal contingência devem existir mecanismos jurídicos que permitam solução pronta, autorizando a mulher, por exemplo, a praticar os atos ordinários de administração, entre eles movimentar a conta bancária, receber salário, benefício previdenciário etc.
Temos conhecimento de um caso, envolvendo um senhor idoso, acometido de problema cardíaco, que foi internado em CTI. Ocorre que o período de tempo que o plano de saúde cobria nesse setor foi ultrapassado.

O plano de saúde propôs, então, que fosse prorrogado o contrato, o que permitiria sua permanência naquela unidade hospitalar. Ocorre que ele não tinha como manifestar sua vontade. Isso impedia a lavratura de procuração a rogo. Seria o caso de se abrir um processo de interdição? Os fatos indicaram que não, porque dias depois ele estava restabelecido.

Entendemos que situações como essa, que não ocasionais, mas freqüentes, devem merecer previsão legal. A sugestão que deixamos é no sentido de o juiz autorizar os atos necessários, mediante prova do ocorrido, o que virá em laudo firmado pelos médicos que atendem o paciente, que demonstrarão de forma circunstanciada o estado do doente, a demora de sua recuperação, a impossibilidade de ele praticar os atos reclamados. Se o estado de coisas persistir, e a pessoa não se restabelecer, o processo será transformado em interdição, processada na Forma do diploma processual civil.

Referências Bibliográfica:

1. RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direita civil, v. 1, p. 22.
2. VIANA, Marco Aurelio da S. Curso de direito civil (Parte Geral), v. l, p. 20.
3. VIANA, Marco Aurelio da S. Op. cit., p. 197.
4. BEVILAQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil, p. 216. 5 PUGLIATTI. Introducción, p. 129.
6. OERTMANN. Introducción, p. 51.
7. VIANA, Marco Aurelio da S. Da pessoa natural, p. 44.

(in, Repensando o Direito de Família, Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família, IBDFAM, Belo Horizonte, 1999, págs. 99/106)

ARTIGOS RELACIONADOS