Dr. Marco Aurelio S. Viana

Advocacia Cível

ARTIGOS

Direito das Obrigações (Teoria Geral). Classificação das Obrigações. Direito Comparado.

Marco Aurelio S. Viana
Doutor em Direito Civil (UFMG) – Advogado em Belo Horizonte

                                                                   17/01/2016

Sumário:

1- Generalidades; 2- Obrigações de Meio e Obrigações de Resultado; 3- Obrigações Civis e Obrigações Naturais; 4- Outras Classificações.

 

1-Generalidades.

A classificação das obrigações tem indiscutível cunho prático (Orosimbo Nonato, Curso de Obrigações, v. 1, pág. 208). Nessa linha, ou seja, advertindo para o interesse de uma classificação das obrigações, entende JEAN-LOUIS BAUDOUIN que não se cuida de interesse puramente acadêmico. Com efeito, diz o jurista, do tipo que se atribui a cada obrigação é possível de deduzir uma série de efeitos e consequências jurídicas importantes. Além disso, tem a vantagem de permitir que se familiarize mais rapidamente com a terminologia jurídica. (Jean-Louis BaudoUin, Traité Élémentaire de Droit Civil – Les Obligations, pág. 10) Não se trata, portanto, de mero trabalho teórico como querem alguns. (De Page, Traité Élémentaire de Droit Civil Belge, t. 2, pág. 399)

CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA ensina que “há sempre a necessidade de classificar, reduzindo a categorias lógicas o que a elaboração quotidiana produz de maneira vaga e indeterminada”. Aduz mais: “as obrigações, que o comércio social engendra são numerosas, e se tem definido através dos tempos de modo vário. Algumas das modalidades ainda hoje frequentes foram criadas e ordenadas pelos romanos; outras de elaboração ulterior, e outras ainda de criação mais recente”. O jurista pondera que é irrecusável o interesse da classificação, porque “reduzindo-se todas as modalidades de tipo obrigacionais a uns poucos grupos, consegue-se ter à mão, para qualquer eventualidade, jogos de princípios que simplificam a solução das questões em torno de cada uma. – Não tem, pois sentido de pura abstração este trabalho classificador. Muito ao revés, há um indisfarçável conteúdo prático na sua base: quem em de enfrentar um problema no arraial da obrigação, deverá logo distinguir o tipo a que esta pertence, enquadrá-la em uma categoria conhecida, e aí encontrará os preceitos aplicáveis à espécie”. (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v. 2, pág. 45, n. 132)

Adverte OROSIMBO NONATO que a classificação varia segundo o ângulo em que se colocar o observador. (Orosimbo Nonato, Curso de Obrigações cit., v. 1, pág. 208)

Se tomarmos o direito positivo pátrio, veremos que o legislador, sob a epígrafe “das modalidades das obrigações”, relaciona diversas variantes. O direito brasileiro adotou a técnica romana, que influenciou outras legislações, distinguindo quando ao seu objeto a obrigação de dar, fazer e não fazer. (arts. 233 a 251 do CC)

Procedeu-se a uma abordagem objetiva. E sob esse modo de ver, cuidou das obrigações alternativas (arts. 252 a 256 do CC), divisíveis e indivisíveis (arts. 257 a 263 do CC). Mas enfocou, também, a questão, sob o ângulo dos sujeitos, dispondo a respeito das obrigações solidárias (arts. 264 a 285 do CC)

No direito português, JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA observa que ”é, porém, no capítulo subsequente das modalidades das obrigações que principia o contacto direto com o regime dos direitos de crédito. As modalidades das obrigações são várias categorias de relações creditórias que é possível distinguir, quer quanto ao vínculo (obrigações civil e obrigações naturais), quer quanto ao sujeito (obrigações singulares e plurais; obrigações conjuntas e solidárias; obrigações de sujeito indeterminado); quer quanto ao objeto (obrigações divisíveis e indivisíveis; genéricas e específicas; pecuniárias, alternativas, de indenização etc.),pela diferente disciplina a que estão subordinadas”. (João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v, 1m pág. 17)

ALEX WEILL, abordando as principais classificações das obrigações, diz que elas são fundadas, seja sobre o objeto, seja sobre a fonte da obrigação. (Alex Weil, Droit Civil – Les Obligations, pág .2) E distingue, quanto ao objeto, reportando-se à distinção tradicional das obrigações da dar, fazer e não fazer, dizendo que o art. 1101 do Código Civil francês reproduz a distinção; observa que uma parte da doutrina propõe outra distinção, opondo as obrigações de resultado às obrigações de meio. Quanto às fontes, ensina que as obrigações têm como fonte essencial o contrato, e que o Código admite as obrigações nascidas dos delitos e quase delitos (art. 1382); acrescenta, ainda, os quase contratos, que engloba a testão de negócios, o enriquecimento sem causa e o pagamento indevido. (Droit Civil – Les Obliigations cit., págs 2/4)

No direito civil de Quebec, a doutrina aponta que a classificação das obrigações presente no art. 983 do Código Civil, leva em conta as fontes, apresentando a vantagem de ser clássica e corresponder às divisões adotada pelo Código Civil: contratos, quase-contratos, delitos e quase delitos e a lei sozinha. (Jean-Louis Badouin, Traité Élémentaire de Droit Civil –Les Obligations, pág. 10)

No plano prático a distinção entre obrigação de dar e obrigação de fazer enseja dificuldades, havendo até mesmo certa ambiguidade. (Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil – Obrigações, pág. 54)

Se não há confusão nos extremos, deparamo-nos, contudo com uma zona grísea, a reclamar acurada atenção, “como, no exemplo clássico, o caso do artesão que manufatura a coisa para o credor, ou, em termos de direito positivo brasileiro, a empreitada, em que existe o facere no ato de confeccionar e um dare no de entregar a coisa elaborada, sendo ambos os momentos integrantes da pretação”. (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições cit. v. 2, pág. 47) em que se põe a complexidade.

Devemos esclarecer o alcance do trinômio dare, facere e praestare no direito romano. Segundo algumas fontes, “como a linguagem comum, empregam o termo dare na acepção genérica de entrega de um objeto com qualquer finalidade. Mas, em sentido técnico, ‘dare’ reporta-se à entrega material da propriedade ou à constituição de um outro direito real, e não à entrega material da coisa. O ‘facere’, que não produz esse resultado jurídico, compreende o ‘non facere’ e todos os outros comportamentos que configurem prestações debitórias e não representem um ‘dare’”. Ressalta-se o debate entre os romanistas a respeito do alcance de ‘praestare’. “Observa-se correntemente que a antítese ‘dare’ – ‘facere’ é exaustiva e que ‘praestare’ reveste um significado mais genérico, referindo-se ao ‘dare’ ou ao ‘facere’ no sentido em que hoje se usa o termo prestação. E, assim, nesta dupla terminologia, o ‘praestare’ exprime mais propriamente o elemento da responsabilidade ínsito na obrigação.” Modernamente as prestações de coisas também se dizem, por vezes, prestações de dar, no sentido de entre- ga de um objeto, e, em paralelo, as prestações de fato dizem-se de fazer ou não fazer. (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações cit., pág. 563, nota 2)

Exemplo clássico é a empreitada, em que temos o facere na confecção e o dare na entrega; ou a promessa de venda de coisa alheia, em que o promitente deva, antes de efetuar a entrega, obter a aquisição do bem. (Washington de Barros Monteiro, Curso cit. (Obrigações), pág. 54)

Buscando vencer os inconvenientes vamos encontrar, mais modernamente, distinção entre obrigações positivas e obrigações negativas.

Nas obrigações positivas o devedor fica adstrito à prestação que se define por um dar ou fazer alguma coisa; nas obrigações negativas o devedor assume uma atitude de não fazer, de abstenção (pati). (Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, v. 2, pág. 59) Aperfeiçoa-se a classificação romana. (Mazeaud et Mazeaud, Lecciones cit., v.1, parte, 2, pág. 20)

Há quem adote outra nomenclatura, falando em obrigação de prestação real e obrigação de prestação pessoal. Na primeira temos a saída de uma coisa do patrimônio do devedor, enquanto, na segunda, o devedor coloca suas energias físicas ou morais como objeto. (Von Thur, apud Marco Aurelio S. Viana, Curso de Direito Civil – Direito das Obrigações, pág. 36)

No direito português, a doutrina distingue entre prestação de fato e prestação de coisa, conforme seu objeto se esgote num fato ou se refira a uma coisa. No território das prestações de fato estão as obrigações de fazer (facere) e não fazer (non facere); nas prestações de coisas inclui-se as obrigações de dar (dare). (João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral cit., v. 1, pág. 82; Jorge Leite Areias Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, v. 1, pág. 66)

Classifica-se, ainda, em função do sujeito, e temos, em critério subjetivo, e é possível falar em obrigação solidária, assim como a divisível e indivisível, o que não invalida a abordagem destas últimas, pelo objeto, considerando-se o desenvolvimento da relação obrigacional em função dos sujeitos.

Por derradeiro, encontramos aquelas obrigações que se destacam por fatores acidentais: as obrigações condicionais ou a termo, alternativas, principais e acessórias.

Reduzindo a três grupos maiores, temos a seguinte visão: a) pelo objeto: as obrigações positivas e negativas, envolvendo as obrigações de fazer, dar e não fazer; b) pelo sujeito: prevalece a indivisibilidade e a solidariedade; c) pelos elementos não fundamentais: obrigações alternativas, condicionais e a termo, principais e acessórias. (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições cit., v. 2, pa´g.45)

Vamos estudar algumas classificações, que se destacam pela importância, deixando claro que será possível encontrar outros modos de ver as obrigações, gerando outras tantas classificações.

2Obrigações de meio e obrigações de resultado.

Encontramos distinção entre obrigações de meio e obrigações de resultado, elaborada por DEMOGUE. Alterando a terminologia, falando em obrigações gerais de prudência e diligência, que substitui as obrigações de meio, e obrigações determinadas em lugar de obrigações de resultado, a mesma ideia é encontrada em outros doutrinadores. (Mazeaud et Mazeaud, Lecciones cit., v. 1, 2ª. parte, pág. 21)

A distinção assumiria importância no campo da prova.

Nas obrigações de meio o que se exige do devedor é que se obrigue a usar de prudência ou diligência normal para alcançar o resultado. É o que se passa com o médico, que não pode prometer a cura, mas que não fica dispensado dos cuidados necessários para que aquele resultado seja atingido, vale dizer, a cura do doente. O médico deve “fazer o seu possível” para sair-se bem – ainsi, un médicinne s’engage par à guerir son cliente, mais faire son posible “pour y réussir”. (Jacques Flour e Jean-Luc Aubert, Les Obligations, v. 1, pág. 32, n. 43)

Devem-se examinar as circunstâncias que envolveram a prestação do serviço pelo médico, por exemplo. Apurar a sua qualificação, as condições de trabalho, os recursos à sua disposição, ou seja, que fique claro que, segundo o que ocorreu, ele, o médico, fez o que era possível fazer segundo o que dispunha para trabalhar. Se o fim perseguido não é alcançado, o credor deverá provar que o devedor não se houve com prudência e diligência a que estava adstrito.

RUY ROSADO AGUIAR JR., estudando a responsabilidade civil do médico ensina que “a obrigação é de meio quando o profissional assume prestar um serviço ao qual dedicará atenção, cuidado e diligência exigida pelas circunstâncias, de acordo com o seu título, com os recursos de que dispõe e com o desenvolvimento atual da ciência, sem se comprometer com a obtenção de um certo resultado”.(Ruy Rosado Aguiar Jr., Responsabilidade Civil do Médico, In Direito e Medicina, pág. 139)

Nas obrigações de resultado o devedor está vinculado a um resultado, a alcançar um determinado fim. Se não o atinge, descumpriu com o contrato. JEAN-LOUIS BOUDAIN exemplifica com a obrigação do vendedor ou do transportador de entregar a mercadoria. (Jean-Louis Boudouin, Les Obligations, pág. 16) Citamos, ainda, como exemplo, o transportador a quem cumpre conduzir o passageiro até o ponto de destino, são e salvo. Se isso não ocorre, é o devedor que provará que o inadimplemento decorreu de causa alheia à sua vontade, como o caso fortuito ou força maior. No exame da obrigação do transportador, adverte SAVATIER que a obrigação do transportador já foi tida como sendo de meio, mas, atualmente, é considerada de resultado: “pour employer une expression commode, alors que l’engagement du transporteur ne portait, suivante l’interpretation ancienne, que sur une obligation de moyen, l’interpretation recente le fait porter sur une obligation de résultat”. Savatier, Traité de la Responsabilité Civile, t. 1, pág. 147)

Obrigação de resultado assume o cirurgião plástico, quando realiza cirurgia estética, porque o cliente busca corrigir uma imperfeição ou melhorar sua aparência. Ao contrário do médico, que é contratado para tratar de uma doença, voltado, assim, para a cura, o interessado em plástica estética não é uma pessoa doente. Ela contrata o profissional com um objetivo certo: corrigir uma imperfeição ou melhorar a aparência. Se o médico não pode atendê-lo, não deve assumir o risco da cirurgia, porque ele está se obrigando a um resultado. O mesmo não se dá, contudo, com a cirurgia voltada para correção de uma deformação, que pode ser congênita, cirúrgica ou traumática. O médico não pode prometer eliminá-la, mas fazer o melhor, o que dá à obrigação cores de obrigação de meio. (Caio Mário da Silva Pereira, Responsabilidade Civil, pág. 157, n. 113) Nesse passo, MARTY E RAYNAUD, dizendo que a obrigação de resultado tem por objeto um resultado determinado que o devedor deve proporcionar ao credor, enquanto na obrigação de meio, o que se exige do devedor é uma certa diligência, visando alcançar o fim pretendido. Se este não é atingido não se pode falar necessariamente que houve inexecução.

No campo da prova e da responsabilidade civil é que essa distinção apresenta cores mais vivas. Quando se tem uma obrigação de resultado, presume-se a falta do devedor, enquanto na obrigação de meio a prova é do credor. (Alex Weill, Droit Civil (Les Obligations, pág. 4)

Em outras palavras: em uma obrigação de meio, sob o enfoque da responsabilidade civil, o que se examina é a falha na utilização dos meios para decidir a responsabilidade do devedor. Exemplo: o simples fato de um médico não alcançar êxito em uma cirurgia não implica automaticamente a sua responsabilidade. Se a obrigação é de resultado, como se dá com a cirurgia estética, não sendo obtido o resultado esperado pelo credor, presente a responsabilidade civil.

Já o exame sob o prisma da prova revela a seguinte situação: se a obrigação é de meio, a prova é do credor, que deve demonstrar que o devedor não se houve com a diligência e prudência que razoavelmente se exige na perseguição do fim proposto. Não se obtendo o resultado, isso não desemboca em presunção de falha do devedor, repousando sobre os ombros do credor a prova da falha. No exemplo do médico que é contratado para cuidar do doente, se este morre, cabe ao interessado provar que a cura não foi obtida porque o facultativo não se houve com a diligência e prudência que se exige nas circunstâncias dadas. Mas se a obrigação é de resultado, não alcançado o que se pretendia, presume-se o inadimplemento da obrigação. O credor não precisa fazer qualquer prova, porque a não obtenção do resultado implica presunção contra o devedor. Mas este pode se subtrair à responsabilidade provando que a inexecução decorre de caso fortuito, de força maior ou por fato de terceiro. É o caso da cirurgia estética. Se o paciente não obtém o resultado que pretendia, presume-se a responsabilidade civil do cirurgião. Este é que deve provar que não alcançou o fim colimado porque ocorreu um caso fortuito, por exemplo. (Jean-Louis Baudouin, Les Obligations cit., pág. 17)

3 Obrigações Civis e Obrigações Naturais.

A divisão das obrigações em naturais e civis vem do direito romano, embora haja contestação a esse respeito. JEAN CARBONNIER observa que esse entendimento é contestado por Cornioley. A obrigação natural foi concebida em Roma como forma de atenuar o princípio segundo o qual o escravo não tinha personalidade jurídica, não podia se obrigar pelos seus contratos segundo o direito civil: ele podia se obrigar segundo o direito natural, no sentido de que após sua liberação ele estava conservando uma obrigação natural, cujo pagamento era válido e não era tratado como doação. Uma outra fonte, propriamente romana, vincula-se ao formalismo: o consentimento sozinho não dava nascimento à obrigação civil, mas desembocava em uma obrigação natural. (Jean Carbonnier, Droit Civil c,, 40Les Obligations cit., pág. 13)

A obligatio naturalis ocupava uma posição intermediária entre a moral e o direito. A ideia básica dos romanos, em matéria de obrigações, repousava na correlação entre elas e a ação. A actio vinha em primeiro plano, e o ius como consequência. O credor (creditor) era quem dispunha de uma ação a seu favor como meio para compelir o devedor (debitor). Na obrigação natural concorriam todos os elementos, mas inexistia um vínculo jurídico. O credor não dispunha de uma ação. Daí dizer Papiano que “solo vinculo aequitas sustinetur”. O creditor não tinha instrumento para compelir o debitor ao pagamento. Se o pagamento era feito espontaneamente, o credor dispunha da solutio retentio, ou seja, estava autorizado a reter a coisa recebida, como se tivesse havido a prestação normal de uma obrigação civil.

E tal como ocorre hodiernamente, distinguia-se entre as obrigações que nasciam perfeitas, mas que por causa superveniente vinha a perder a actio, e aquelas que já nasciam sem ação. (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições cit., v. 2, pág. 33)

O tema é abarcado pelo direito moderno, embora sem grande interesse prático. (Carvalho de Mendonça, Obrigações, v.1, pág.158)

Temos as obrigações imperfeitas do direito alemão, sem se confundir com os deveres morais ou sociais, ou com as obrigações secundárias, que integram, também, a figura alemã.

Na obrigação civil concorrem três elementos: sujeito, objeto e vínculo jurídico. O sujeito ativo, o sujeito passivo, a prestação e, entre os dois sujeitos, o vínculo jurídico, que permite ao credor exigir a satisfação da prestação, respondendo o patrimônio do devedor.

Faltando a garantia, vale dizer, se o credor não tem como compelir ao cumprimento da prestação, apresenta-se a obrigação natural. Estão presentes os dois sujeitos, há objeto, mas não se efetiva a responsabilidade do devedor. Em razão disso, JACQUES FLOUR e JEAN-LUC AUBERT ensinam que a obrigação natural é uma obrigação sem sanção. (Jacques Flour e Jean-Luc Aubert, Les Obligations, v.I, pág. 29, n. 40) Mas a tutela jurídica não é estranha porque se o devedor solve, o credor pode reter o pagamento, dispondo a solutio retentio, o que inibe a restituição.

A retenção do pagamento não se faz por liberalidade, mas como pagamento válido, o que leva a uma equiparação às obrigações civis, com ressalva que se faz quanto à coercibilidade. (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações cit. p. 138)

O Código Civil de Portugal contempla a obrigação natural, nos arts. 402º a 404º. Trata-a como figura geral.

No art. 402º traz a noção de obrigação natural, nos seguintes termos: “A obrigação diz-se natural, quando de funda num mero dever moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”.

A Lei civil portuguesa não define o que seja o dever de ordem moral ou social, a que se refere o dispositivo do artigo citado. A doutrina entende que cabe aos tribunais um largo arbítrio na sua determinação. Cuidam-se, as duas expressões citadas, de conceitos jurídicos indeterminados ou conceitos legais indeterminados, sendo, efetivamente, função do juiz ou tribunal, no caso concreto, vencer a abstração estampada na “hipótese de fato estampada na norma”. (Cfr. José Renato Nalini, Comentários ao Novo Código Civil. Rio, 2ª. ed., Rio: Forense, v. XXII, pág. 191)

O art. 403º, 1 consagra a não- repetição do indevido, dizendo que “ não pode ser repetido o que for presta- do espontaneamente em cumprimento de obrigação natural, exceto se o de- vedor não tiver capacidade para efetuar a prestação”. No nº 2 do art. 403º a Lei civil esclarece quando a prestação é considerada espontânea: quando é livre de toda coação.

Finalmente, no art. 404º estabelece o regime das obrigações naturais, dizendo que elas estão sujeitas ao regime das obrigações civis “em tudo o que não se relacione com a realização coativa da prestação, salvas as disposições especiais da lei”. Advertem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, que a “regra basilar do regime das obrigações naturais é sua equiparação às obrigações civis, com duas ressalvas importantes: a das disposições que especialmente se referem apenas àqueles vínculos e a da inaplicabilidade das normas que pressuponham a realização coactiva da prestação”. (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, v. 1, pág. 253)

Fica bastante claro, na disciplina do diploma civil de Portugal, que a obrigação natural não pode ser imposta, não se realiza de forma coativa, só se efetivando a prestação de forma espontânea. Se isso ocorre, não se repete (art.403.º do CC), desde que a prestação tenha sido prestada livre de coação, como está no n. 2 do art. 403.º do diploma civil.

O Código Civil de 1916, no art. 970, dizia que “não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação natural”. Em comentários ao artigo citado, CLÓVIS BEVILÁQUA ensinava que O Projeto falava em dever moral, vindo a expressão obrigação natural por iniciativa da Comissão do Governo. (Clóvis Beviláqua, Código Civil, comentários ao art. 910, pág. 104)

Ao disciplinar o pagamento indevido, não se permite seja repetido o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível (art. 882 do CC/02). Não se pode dizer que esteja dispondo a respeito da obrigação natural, mas de obrigação judicialmente inexigível, o que se dá, também, com as dívidas de jogo. (art.814 do CC/02) (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições cit., v. II, pág.302, n. 170)

O que informa a disciplina legal é a equidade. Aquele que paga dívida prescrita cumpre com o dever moral, que não morre com a prescrição. O mesmo dever moral informa o pagamento de dívida de jogo.

Assim, o direito brasileiro não disciplina a obrigação natural, como o faz o direito português, mas dispõe objetivamente a respeito de obrigações que não podem sem exigidas judicialmente, cujo único efeito é a irrepetibilidade.

Em que pese ausente a coercibilidade, destaca-se o pagamento voluntário, que é o que interessa ao Direito.

Não percamos de vista que há um complexo normativo formado por regras sem conteúdo jurídico. São os preceitos ditados pelos usos e costumes, de conveniência, de etiqueta, de moral, de religião. (Marco Aurelio S. Viana, Curso de Direito Civil – Parte Geral, pág. 2) Os valores contidos nessas regras de conduta sem conteúdo jurídico interessam ao direito, uma vez que o fator moral reflete no território do direito. MARTY ET RAYNAUD observam que a moral não é estranha ao mundo dos negócios, estando o direito civil francês submetido à influência da moral cristã. (Marty et Raynaud, Droit Civil- Les Obligations cit., t. 2, pág. 14, n. 9)

JEAN CARBONNIER observa que a obrigação natural é reconhecida pela jurisprudência francesa como cumprimento de um dever de consciência, como um dever moral. (Jean Carbonnier, Droit Civil/Les Obligations cit. pág. 9)

No direito civil de Quebec, pondera JEAN-LOUIS BAUDOUIN, a obrigação natural é reconhecida pela lei como sanção de um dever de consciência. (Jean-Louis Baudouin, Traité Élémentaire de Droit Civil – Les Obligations, pág. 14)

Como existe um valor moral que merece proteção, quando se dá o pagamento a tutela jurídica se realiza, evitando que se volte à situação anterior, quando não se tinha como exigir o cumprimento ou adimplemento.

É o que se passa com a dívida de jogo, como encarecemos anteriormente, que pode ser inserida no rol da denominada obrigação natural, como cumprimento de uma dívida de honra. Mas não é possível falar tecnicamente em obrigação natural. O que temos é apenas a tutela de um valor extrajurídico.

4- Outras Classificações.

 

Podemos distinguir entre obrigações autônomas e obrigação não autônomas.

A distinção está assentada na existência ou não de vínculo jurídico preexistente. A obrigação é tida como autônoma, quando não se tem um vínculo jurídico preexistente. É o que se dá com a obrigação nascida de um contrato. O que estabelece a relação entre credor e devedor é o contrato, inexistindo qualquer outra relação entre as partes. Se João vende um móvel para Pedro, a obrigação de entregar o objeto tem apoio apenas no contrato. (Fernando de Noronha, Direito das Obrigações, pág. 4141)

Deparamo-nos, contudo, com obrigações que pressupõem a existência prévia de um vínculo especial de outra natureza entre as partes. Elas só existem em função de relações jurídicas preexistentes não obrigacionais. (Jorge Leite Areais Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, v. 1, pág. 31) Há um vínculo de natureza real, de índole familiar, ou de cunho sucessório. Na compropriedade temos a obrigação de participar das despesas necessárias à conservação da coisa, por exemplo; se há relação de filiação, dela decorrem os alimentos; finalmente, se há legado, por força de relação sucessória, surge a obrigação de entregar a coisa legada. Como ficou dito anteriormente, elas constituem o desenvolvimento ou projeção de outra relação jurídica específica, que se situa, por exemplo, no direito de família ou no direito das sucessões.

Aplica-se às relações obrigacionais não autônomas o regime geral das obrigações, observando-se apenas as particularidades que oferecerem. Respeitado esse limite, o regime legal é o que se aplica às obrigações autônomas.

Fala-se, ainda, em obrigação positiva e obrigação negativa, conforme a prestação do devedor seja um dar ou fazer, ou uma abstenção.

A obrigação de dar abrange o dar coisa certa e coisa incerta.

Será simples, quando envolve apenas uma prestação; se ela contém mais de uma prestação é denominada como complexa ou composta. Nestas, existindo pluralidade de pretensões, devendo o devedor cumpri-las conjuntamente, temos obrigação conjuntiva ou cumulativa, ou ela é alternativa. (Arnaldo Wald, Curso de Direito Civil – Obrigações e Contatos, pág. 32; Pothier, Tratado de Las Obligaciones, pág. 105, apontando doze classificações).


 

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