Dr. Marco Aurelio S. Viana

Advocacia Cível

ARTIGOS

Direito Civil. Apropriação dos Bens. Disciplina legal. Propriedade. Posse. Interesse privado e interesse da coletividade.

Marco Aurelio S. Viana
Doutor em Direito Civil (UFMG) – Advogado em Belo Horizonte

 

Resumo: O artigo aborda a apropriação de bens, que se faz pelos institutos da posse e da propriedade. Examina a Constituição Federal de 1988, destacando a finalidade econômica e social do direito de propriedade. Detém-se na disciplina legal dada pelo Código Civil.

Palavras chave: apropriação de bens, direito de propriedade, destinação econômica e social do direito de propriedade, direito subjetivo relativo.

A apropriação dos bens é fato econômico que o direito positivo pátrio disciplina pelos institutos da propriedade e da posse.

O conflito de interesses encontra, na ordem jurídica, o seu ponto de equilíbrio, sem que isso implique em sua eliminação. As regras de conduta de conteúdo jurídico controlam o conflito em torno da apropriação dos bens, definindo o comportamento do indivíduo em relação aos demais membros da sociedade, tornando possível a adequação da conduta própria às condutas alheias, introduzindo a previsibilidade, que assegura a segurança, cuja ausência inibe a colaboração interindividual.

Clóvis Beviláqua assinala que o homem vive em sociedade, e por isso a apropriação dos bens e a sua defesa assumem formas sociais, o que não significa seja eliminado inteiramente, ou em porção excessiva, o impulso individual. E acrescenta que “o movimento biopsíquico da apropriação tende a satisfazer necessidades de momento; quando a inteligência intervém, orientada pelos fatos, com a ideia de previdência, o ato da apropriação adquire estabilidade, a princípio, naturalmente precária, mas, progressivamente, ganhando segurança e duração. Originou-se, então, na sociedade humana, o fenômeno econômico-jurídico da propriedade, que, também, se manifesta, rudimentarmente, sob a forma de instinto, em certos animais, que guardam, depois de satisfeita a forme, a presa ou a razão, para utilizá-las depois, e as defendem unguibus et rostro.” ( BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas.Rio, Forense, 4ª. Ed., v. 1, p. 96, § 31, 1956)

Destaca-se o caráter normativo obrigatório, realizado pelas normas que edita. Ao impor determinada conduta, o direito positivo permite a integração do ser humano na sociedade, porque a convivência exige uma ordem que permite a integração da força individual de cada um com a dos outros, que se coordenam harmoniosamente e que cria as condições para que seja alcançado o bem comum. Destaco, aqui, o aspecto normativo do direito.
Disciplinando a apropriação dos bens, em verdade o Estado está se servindo do direito positivo para regulamentar a vida econômica e social. Estabelece, assim, a conduta dos indivíduos em relação aos bens, estabelecendo as prioridades em termo de apropriação, ou seja, o que pode ser objeto de apropriação individual (bens de consumo, por exemplo), e aqueles que ficam sob o talante do Estado, os denominados bens de produção. As regras de conduta de conteúdo jurídico buscam preservar e manter a apropriação, evitando o conflito generalizado que comprometeria a existência na sociedade.

Não se trata de uma questão de escassez de bens, pura e simplesmente, mas de uma racionalização da utilização da riqueza. Para exemplificar tomo o mandamento do art. 5º da Lei n. 10.257/2001, que cuida da utilização compulsória do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado. A Lei especial disciplina o aproveitamento do solo urbano, dentro da ótica constitucional. Tem uma visão ampla, porque está disciplinando a vida econômica e social, evitando que haja desequilíbrio na apropriação dos bens. Um imóvel subutilizado reflete negativamente na vida social, quando se considera os problemas habitacionais. Evita-se a especulação, que beneficia o especulador, mas onera a sociedade, trazendo um custo social, que recai sobre a coletividade. A riqueza pertence a todos, embora possa estar em mãos de alguns, em proporção diferente, de tal forma que abunda para uns e falta para outros. Mas sua disciplina se faz no interesse social, como instrumento de amortecimento dos efeitos negativos da utilização desigual, ou a inércia do proprietário, gerando desconforto social.
São criados mecanismos para que o Município conduza a política urbana, impondo o aproveitamento adequado do solo. O art. 7º autoriza a aplicação do IPTU progressivo, em caso de descumprimento das condições e prazos para o aproveitamento que atenda ao interesse social. Se o proprietário não parcela, edifica ou utiliza o imóvel, é assegurado o direito de desapropriar o imóvel. (art. 8º) A conduta jurídica desejada é imposta, e são criados os mecanismos de sua efetivação.

Dentro dessa ótica, a propriedade está sempre a serviço do bem coletivo, sem que isso implique em prejuízo para o proprietário, que pode utilizar o imóvel. Mas essa utilização não se faz no seu interesse apenas, mas segundo aquilo que interessa a todos. Dessa forma, a utilização da riqueza atende à sociedade, os proprietários e os não- proprietários, e é possível estabelecer o equilíbrio na vida social, garantindo a propriedade privada de um lado, mas submetendo seus serviços ao interesse social. Posso avançar e dizer que a regulamentação do direito de propriedade se faz para garantir sua função social.

De outro lado, não se pode perder de vista o caráter instrumental do direito. Isso significa que ele é o instrumento de realização da ideologia do Estado, ou das políticas adotadas pelo Governo para os diversos setores em que se divide e manifesta o Poder Público.

Na exposição de motivos do Código Civil da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas de 1964 constava que as leis civis soviéticas eram chamadas a colaborar ativamente para a solução dos problemas da estrutura do comunismo, contribuindo para consolidar o sistema socialista de economia. Atribuía ao Estado a propriedade dos meios de produção e assegurava ao cidadão a propriedade pessoal, que aparecia como derivada da propriedade socialista, constituindo um dos meios de satisfação das necessidades dos cidadãos. E acrescentava que, na medida da progressão para o comunismo, as necessidades pessoais dos cidadãos seriam satisfeitas, em um grau crescente, à ajuda de fundos sociais.

Destaca-se, aqui, o caráter instrumental a que me referi.

E tal caráter apresenta-se no direito pátrio, também. As leis sobre inquilinato refletem bem esse aspecto do direito positivo, porque variam no tempo, segundo o que pretende o Estado em termos de política para a habitação.

Nessa mesma linha a Lei n. 11.977/200, por exemplo, visa, entre outros pontos, a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. O Programa Minha Casa Minha Vida tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais para famílias com renda mensal que especifica. O direito positivo é utilizado como instrumento de política habitacional.

O mesmo raciocínio vale para o denominado Estatuto das Cidades, que cuida, entre outros aspectos, do aproveitamento do solo urbano.

Em todos os exemplos citados, ao lado do caráter normativo, presente o pensamento do Estado em relação à apropriação dos bens, dentro da ótica do equilíbrio necessário entre a utilização dos bens e o interesse da coletividade, de forma a reduzir o custo social que o desequilíbrio pode causar.

A apropriação das coisas reflete de forma significativa na ordem econômica.

Como ciência normativa o direito preocupa-se e dá maior importância ao modo pelo quais as coisas são utilizadas, do que com a própria natureza que possuam. (SOUZA, Washington Peluzo Albino de, Direito Econômico e Economia Política, Belo Horizonte, Prisma Editora Cultural Ltda. v. 1, p. 233, s.d.)

O objeto dos direitos são os bens, tenham ou não expressão econômica, significado pecuniário, materialidade ou não. Coisa é o que existe. Se for acrescentada à coisa a ideia de utilidade, como coisa capaz de satisfazer uma carência, posso falar em bem, que é objeto do direito. Utilidade envolve coisas com valor econômico, que têm expressão pecuniária, e outras, sem significado econômico, mas com valor social, político, familiar etc. (vida, liberdade, por exemplo) O bem nasce em função de um processo de valorização que incide sobre a coisa, e tenho os bens econômicos e os bens não econômicos. (Sobre o tema: VIANA, Marco Aurélio S., Código Civil Comentado – Parte Geral. Rio, Forense, 1ª. Ed., p. 151, 2009)

Se uma coisa tem valor econômico ou social, e gera conflito, como ciência normativa, o direito surge e desenvolve, pela norma, sua disciplina, fazendo o seu controle, como Marco ficou dito no n. 1, supra.
O objeto do direito de propriedade é a coisa corpórea, que apresenta utilidade, valor econômico, expressão pecuniária, cuja apropriação significa poder. Como coisa que tem utilidade e atende a uma necessidade humana, é considerado um bem, objeto do direito, bem econômico, cuja apropriação reclama a presença da ordem jurídica, pelas razões que já abordei.

O Estado atua de forma significativa na regulamentação da apropriação dos bens, seja no sentido de regular a atividade econômica, seja para desenvolver políticas de interesse social, o que permite o fluxo da riqueza pelo organismo social, que é vital para uma vida satisfatória em sociedade.

O direito positivo realiza essa tarefa, ou seja, é por ele que o Estado atinge tais objetivos, o que decorre do caráter normativo e instrumental a que já me referi. E isso é sensível na Constituição Federal.

Efetivamente, a Lei Maior garante o direito de propriedade (art. 5º, XXII), mas o faz como direito subjetivo relativo, espantando o absolutismo que se pretendeu no passado. Há uma garantia da propriedade em geral, ou seja, direito de conteúdo econômico. (FILHO, Manuel Gonçalves Ferreira apud LOPES,Teresa Ancona, Comentários à Constituição Federal de 1988, Rio, Forense, p. 146, coordenação Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra)

A propriedade, nos dias que correm, está subordinada ao bem-estar social atenuando o individualismo, o que Pontes de Miranda destacou quando do estudo do art. 147 da Constituição de 1946. (MIRANDA; Pontes de apud Caio Mário da Silva Pereira, Direito Civil – Alguns Aspectos da sua Evolução. Rio, Forense, 1ª. Ed., ,p. 72, 2001) O art. 170, III da Constituição Federal de 1988 traz normas específicas sobre a função social da propriedade. E entre os princípios da ordem econômica temos a propriedade privada.

Os arts. 182 e 183 da Lei Maior cuidam do solo urbano, dispondo sobre política urbana, que se corporifica, em termos de norma infraconstitucional, na Lei n. 10.257/2001, denominada Estatuto da Cidade. Tem-se, ainda, a política agrícola e fundiária e a reforma agrária, nos arts. 184 a 191.

O Código Civil subordina o exercício do direito de propriedade às suas finalidades econômicas e sociais (art. 1.228, § 1º), e introduz a noção de abuso de direito no § 2º do art. 1228; submete a propriedade privada ao interesse superior da comunidade, dispondo a respeito da desapropriação (§ 3º do art. 1.228); distingue, ainda, a propriedade do solo e do subsolo (art. 1.230 do Código Civil), como já está no art. 176 da CF.

A disciplina da posse se faz, também, que é juntamente com a propriedade formas de apropriação dos bens, estando ela, também, submetida à função social. Se o proprietário pode assumir uma postura estática, porque dispõe do título, a posse é necessariamente dinâmica, porque o possuidor deve extrair os serviços que o bem permite, caso contrário sua atuação não representa utilização efetiva do objeto. O possuidor só será tido como tal se der ao bem sua destinação econômica e social, o que implica em geração de riqueza e atende à coletividade.

Não se deve esquecer que o Código Civil perdeu a centralidade de outros tempos, e, na sua hermenêutica, merecem destaque “os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, os quais se impõem às relações interprivadas, aos interesses particulares, de modo a fazer prevalecer uma verdadeira “constitucionalização” do Direito Privado.” (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v. 1, n. 4, p.23)

Altera-se substancialmente a estrutura da propriedade, fazendo com que a função social seja o orientador do exercício dos poderes atribuídos ao dominus. A noção de função social compatibiliza o exercício do direito com a destinação social dos bens. Temos uma intervenção no exercício do direito de propriedade, não no direito em si. A propriedade privada é garantida, mas o seu exercício é voltado para o bem comum. (VIANA, Marco Aurélio S., Comentários ao Novo Código Civil. Rio, Forense, v. XVI, 4ª. Ed. p. 54, 2013. No mesmo sentido: ARAÚJO, Bárbara Almeida de. A posse dos Bens Públicos. Rio, Forense, 1ª. Ed., p. 44, 2010)

Referências Bibliográficas:

ARAÚJO, Bárbara Almeida de. A posse dos Bens Públicos. Rio, Forense, 1ª. Ed., p. 44, 2010

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 4ª ed. Rio: Forense, 1956.

FILHO, Manuel Gonçalves Ferreira apud LOPES,Teresa Ancona. Comentários à Constituição Federal de 1988, Rio: Forense, p. 146, coordenação Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra)

MIRANDA; Pontes de apud Caio Mário da Silva Pereira, Direito Civil – Alguns Aspectos da sua Evolução. Rio: Forense, 2001)

SOUZA, Washington. Direito Econômico e Economia Política, Belo Horizonte: Prisma Editora Cultural Ltda

VIANA, Marco Aurélio S., Código Civil Comentado – Parte Geral. Rio: Forense, 2009.
VIANA, Marco Aurélio S. Comentários ao Novo Código Civil. 4ª edição v. XVI pág. 54.Rio: Forense, 2013.

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